Exclusivo
O amor incondicional, o ágape que citei ontem, não exige
exclusividade. No fundo, ele supera todos os outros tipos de relações, e não
necessariamente por suplantar todas as barreiras de língua, sexo e religião. O
amor incondicional realmente pode mudar o mundo.
Mas há um outro tipo de amor, esse mais comum, que todos,
quando têm sorte, experimentam na vida: o amor de casal. Esse amor é tido como
superior na medida em que é escolhido e fundamento da sociedade monogâmica que
utiliza um contrato para estabelecer um modelo de conduta e de vida.
Todos ou quase todos passam a vida buscando esse amor. E
quando o experimentam muitas vezes, de roldão, acabam levando o amor de dar a
vida – como mães e pais – e de segurar a barra em uma trajetória que não é mais
solitária e penosa, mas compartilhada e gostosa.
Há um mês, eu não conseguia ultrapassar a barreira de meu
ego e entrar no universo alheio. Eu já conseguia, numa descoberta fundamental,
alguns meses antes, deixar o outro sair e tentar me invadir – clamando pelo
ágape já citado. Mas não conseguia abrir o coração, abandonar a razão e
deixar-me afundar em mundos inóspitos sempre mais profundos não restritos a
conteúdo, qualquer conteúdo.
Foi, salvo engano, a maior descoberta de minha vida, maior
até que a do ágape, que eu, muito inocentemente, restringia a uma espécie de
santidade que outros – bem mais sábios que eu, pelo jeito – também encaram
dessa forma. Mas para que isso acontecesse foi necessário que eu fosse
supremamente derrotado, fisicamente até. Como aqueles filmes de lutadores.
Passaram-se infinitas horas, desde então, cobrindo milhares
de quilômetros internos, a mim e ao outro, calando simplesmente a boca. Ocorre
que eu sou um cara afeito ao pensamento, o que faz com que eu tenda a dominar,
pela lógica e pela memória, tudo o que me é transmitido. A impressão, para o
outro, acaba sendo então que eu não me envolvo, que eu sou uma espécie de
máquina que consome, analisa e transforma aquilo que deveria entrar por outro
lado, ou melhor mais embaixo, no coração.
Não consigo, assim de chofre, fazer diferente na minha vida.
Tenho 47 anos, e digo que passei 46 perdido, ou quase, navegando entre um medo
de mim e muitos medos dos outros. Aquela amiga lá de Barcelona me disse que
sentia, em si, o medo que eu nutria das pessoas em geral. Para verem como
aquela garota é sensível. Pois bem, a razão, e mais ainda, a consciência, foi a
forma pela qual passei a conseguir sobreviver nesse tipo de relação. Mas a
consciência é fria – e se expressa muitas vezes por olhares parados e
ensimesmados que criam distâncias às vezes intransponíveis entre pessoas que às
vezes se gostam muito, até demais.
Por outro lado, até entendo que algumas pessoas, quando
abandonam a consciência, tendam a se abandonar. Mas pelo que venho notando o
verdadeiro abandono acontece, sim, com consciência, e é algo que, ao contrário de escravizar à vontade do
outro, liberta. Por isso, não caio mais na trampa de achar que entregar-se
significa necessariamente ceder. Só cede realmente quem assume perfeito
controle de si. Como consequência, tenho evitado cair em armadilhas que, por me
envolverem, poderiam fazer com que eu me perdesse posteriormente. Outra
vantagem é distinguir, nos pequenos sinais, vontades que muitas vezes não
expressam certezas, mesmo que temporárias, mais dúvidas travestidas em
insegurança e em vontade de experimentar, como se a gente fosse corpo
distanciado da alma. Não caio mais nessa. E olha que há pouco eu implorava por
momentos desse tipo.
Eu disse a alguém, muito recentemente, que sou um cara com
dúvidas atrozes e infinita e insaciável vontade de viver – e portanto de
querer. Minhas dúvidas hoje descansam em sua maioria, e mais que no ágape, que
também tem suas dúvidas (dá para amar desse jeito a qualquer um?, por exemplo),
no sincero reconhecimento do amor romântico em si e no outro. Ou seja, em
quando realmente amo e em quando realmente sinto que o outro me ama. Mas não
como ágape, não mais sob esse ponto de vista. Como amante mesmo.
Também disse a esse alguém que não tenho tempo – e não tenho
mesmo. Mas meu tempo todo eu o passo nessa lide, nessas dúvidas. Não desperdiço
um segundo sequer dos dias que me restam tentando distinguir as coisas, uma da
outra, uma da outra. Enquanto isso, claro, eu vivo. Mas a vida é bem mais que satisfação
de instintos. Viver é entrar em portas – e não é porque elas se abrem que elas
são abertas (às vezes apenas estão escancaradas – e não somos responsáveis
quando é isto o que realmente acontece).
Ocorre, como corolário, porém, que a maior de todas as
lições é que o tempo passa o tempo todo. E que não é porque se está distante
que o tempo não continua, que os segundos não são aproveitados, que as ligações
não se estreitam ou se afastam. Como eu havia dito, estamos, sempre, todos
juntos.
O leite tava caro mas comprei. Não havia fibras mistas, por
isso só foi aveia. Ainda resta couve a fazer. E agora à tarde lá vou eu fazer
reviver o “Fugindo” que quase nada mais tem a ver comigo. Vai que passo.
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