Tuesday, November 18, 2014

Encontros

Uma tarde destas eu estava no centro de São Paulo com uma amiga que, provocada por mim, estava prestes a jogar um pedaço de pão de batata na minha cara. Assim iam as coisas quando, de repente, como se aparecesse surgida de um túnel do tempo, apareceu ao meu lado a dona Nina. Até agora, dias depois, mal consigo divisar o que senti.
A dona Nina foi nossa empregada, minha e de minha ex-esposa, por 11 anos, e que eu não via há 4, quando a separação dividiu minha vida ao meio. A história da dona Nina em minha vida é muito expressiva.
Conheci dona Nina quando se tornou faxineira da empresa em que eu trabalhava na época. Lá ela ficou alguns meses, até o momento em que uma mulher estúpida que também trabalhava por lá inventou uma história qualquer, e por causa disso dona Nina foi demitida.
Na época, dona Nina enfrentava alguns graves problemas de saúde. Eu acabei me apegando a ela e lhe sugeri que fizesse faxina em casa, de 15 em 15 dias (depois, toda semana). Assim se deu por 11 anos. Dona Nina não nega que nossa ajuda foi providencial. Alguns anos depois de trabalhar conosco, ela arrumou um emprego, mas nunca desistiu de nós.
Quando fui embora, não deu para nos despedirmos. Minha ex-esposa fez a tática da terra arrasada, não deixou nada que fizesse com que algo lembrasse de mim. Dona Nina também acabaria indo embora, por uma discordância por 20 reais. Isso ela me contou agora.
Mas o encontro com dona Nina assume para mim uma dimensão ainda mais providencial. Pois ela acompanhou todo nosso casamento, os altos e baixos, e sempre soube de detalhes – alguns eu diria meio podres – de mim mesmo. Claro que nunca faltou com a confiança.
A questão é que eu havia ficado com a impressão de que ela, na separação, acabara ficando do lado da minha ex-esposa. Como se o fato de saber profundamente quem realmente eu era naturalmente a colocasse contra mim. Bom, deixei passar. Precisei várias vezes dos seus serviços, mas como não tinha como pedir seu telefone, a gente se afastou.
Até uma destas tardes.
Ela pareceu-me igual, até melhor que antes. É uma senhora mirrada, de origem nordestina, e morava lá pelos lados do Embu das Artes – agora, perto de casa. Contou-me que o marido foi embora e que um dos três filhos está para casar. O passarinho que eu lhe dera morreu – ela diz que de saudade de mim (custo a acreditar). Mas manteve a gaiola (enorme).
Dona Nina é uma pessoa especial. Reservada, não deixa de expressar, contudo, quando realmente gosta de alguém. E ela ficou realmente feliz em me ver – e acompanhado por minha amiga. Eu fiquei feliz mas estupefato. Sabem quando algo acontece que parece juntar universos que naturalmente não pareceriam jamais se tocar? É como se ela tivesse surgido de uma cápsula espacial ou do tempo. Não conseguia entender. Até hoje não consigo.
Enquanto conversávamos, minha amiga, pega desprevenida, parecia entretida em sacar a energia circundante entre nós. Até o momento em que eu pedi um abraço de dona Nina, e nos despedimos então. Essa minha amiga é discreta, até demais. Mas não se conteve em dizer depois o que sentiram.
O fato é que a impressão que ficou de tudo foi tão indelével que horas depois que nos despedimos, dona Nina e eu, continuei pensando nisso. Repetindo: puxa, a dona Nina. Minha amiga não parecia entender minha fixação. Nem eu entendia. Simplesmente o encontro ficou marcado. Pois finalmente eu percebera que não havia sido, ao que parece, o canalha que sempre achei que fora. Ela não achava isso. Eu também não, mas não sei bem por quê, acabei me encolhendo em culpa, como se tudo tivesse sido culpa minha. Tudo, o casamento, a vida em comum, a separação.
Dona Nina pode não me conhecer tão bem, claro. Mas abriu em mim uma certa esperança. Como se não fosse realmente claro que eu havia sido o culpado. Como se algo tivesse ficado no ar. Na dúvida. Uma dúvida que agora passou a me abrir alguma esperança. Uma dúvida que eu, lá no fundo, sabia que existia.
Hoje estou em outras. Vivendo os melhores dias, meses e anos de toda minha vida. Momentos difíceis como nunca antes, com desafios inacreditáveis, com superações constantes, com desafios e erros e desculpas e aceites que nunca jamais imaginei que pudesse enfrentar – e superar. Mas os melhores momentos de todos os que jamais vivi. Com amigos sinceros em todos os lugares, mãos estendidas onde menos espero, abraços apertados em ambientes diversos, moedas contadas mas sabores insuspeitados, dúvidas atordoantes e recompensas vindas sei lá de onde. Um enigma. A vida tornou-se um enigma.
Mas eis que este artigo já teria feito todo o sentido – este – se agora mesmo não tivesse acontecido algo ainda mais atordoante.
De repente, apareceu no face um artigo de uma ex-colega de faculdade desancando uma figura escrota. Curti. Minutos depois, essa colega quis ser minha amiga de face. Assenti. Mandei-lhe uma curta mensagem e entabulamos conversa.
Ela não vive mais no Brasil. Montou família, teve filhos e tá na Europa. Especialista em políticas públicas – uma vez me convidou a um evento no qual eu perdi quase totalmente a compostura, com motivos na hora óbvios que contaminaram a todos e que ela admirou –, essa minha ex-colega lançou-me em inbox umas declarações de lembrança que quase me levaram às lágrimas. Não as transcrevo aqui, mas em algo parece que realmente minha presença lá, na faculdade, e depois, a afetou profundamente. A tal ponto que não parecia se conter.
Fiquei ressabiado, mas a conversa posterior foi tão gostosa que minhas reservas esmoreceram. Ela também falava a verdade. Algo de bom em mim ficara com ela, passados quase 20 anos de distância – e agora, dezenas de milhares de quilômetros. Ainda estou estupefato. Logo eu passando por isso, logo eu, cujas marcas do passado desfiguraram meu caráter a tal ponto que deixei de me reconhecer em qualquer espelho por que passo.
Essa minha ex-colega lembrou-me uma amiga que faz parte do meu grupo de teatro que foi uma das primeiras pessoas a me mandar mensagem no dia do meu aniversário. Uma mensagem tão linda e em público que ainda me deixa apalermado. Pois essa minha amiga, uma garota com tamanha força interior que serve para praticamente qualquer papel assim, de improviso, foi uma das primeiras pessoas na vida que eu tratei realmente com amor. E ela percebeu. Um amor que eu parecia desconhecer à época, mas no qual eu apostei – um amor que me permitiu montar meu grupo, no fundo. Um amor transcendental que outra amiga me disse que tem nome: ágape. Procurem. Um amor incondicional. Como eu quero. Acima de tudo.
É estranho mas ao mesmo tempo providencial e explicável que tudo isto esteja acontecendo comigo agora. Assim como é absolutamente natural que eu agora consiga me acarinhar por colegas, em oficinas ou grupos variados, e que consiga tornar meus amigos e amigas (mais amigas). Pois algo em mim parece enfim se abrir – algo que atrai de forma inapelável e que por vezes quase me deixa em maus lençóis. Afinal, sou um homem, ou não. E sou, realmente. Com tudo o que de bom e patético isso possa acarretar.
Agora uma outra amiga está viajando no litoral norte. Trocamos whatsapp de vez em quando, e eu quase a sinto andando pelas ruas daquela cidade. Diz que o dia está lindo, a brisa suave e o céu azul. Eu sinto que estou do seu lado. Como do lado de minha amiga quando encontrei dona Nina. Como do lado de minha ex-colega que terminava um artigo em Barcelona. Como do lado daquela amiga – da dona Nina – que agora termina uma tradução. Como do lado de minha amiga atriz que se recupera de um problema pessoal. Como do lado de tantas pessoas legais que não páram de aparecer e de me dizer: sim, cara, você é um cara legal. Pode não parecer, mas é. E melhor, sempre foi.

Eu sempre estive certo. Como diz uma peça minha: Estamos todos juntos.

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